quarta-feira, março 23, 2005

Histórias

- Será que a bruxa tá acordada, meu?
- Se não tá, vai passar a tar!
Uma pedra parte o vidro da janela. Ouve-se o barulho de gatos assustados mas mais nada dentro da casa de aspecto abandonado parece responder.
"Vamos embora, isto já não tem piada." diz o primeiro.

Ela abre a cortina velha e observa pela janela partida um grupo de rapazes que se afasta na escuridão da noite. Ela retira a mão e a cortina volta à sua posição inicial, aumentando as sombras da sala. A velha solitária permanece sentada num pequeno sofá azul, roto e sujo perto da janela. Um gato passa pelas suas pernas, "Que foi, Trot? Queres mimos, é?” diz ela enquanto afaga o animal carinhosamente. Ela conhece todos os gatos que alberga em sua casa, um pequeno rés-do-chão degradado. A todos deu nomes baseados nos livros do seu autor favorito, Charles Dickens.
O gato afasta-se, por momentos ela parece absorta nos seus pensamentos. De repente, pega numa pequena caixa de madeira, abre-a e contempla o seu conteúdo. Parte de uma folha com letras gregas escritas nela, um barco de papel com a mensagem “Lá vai 33% do grupo, agora valo 50%”, um pedaço de vela quase totalmente gasta. Memórias roubadas ao Tempo, de alturas felizes. Alturas em que não estava só, em que sentiu que pertencia. Amigos que desapareceram como por entre um nevoeiro, seguiram com a sua vida deixando-a presa a promessas quebradas.
Ela fecha a caixa e deixa a sua mão a descansar em cima da tampa. O conceito de tempo já não lhe diz algo. O relógio na parede parou há já muito tempo.
Toda a vizinhança diz que ela enlouqueceu, justificação fácil para catalogar quem se afastou das pessoas. Ela sabe o que os outros pensam dela. Afastou-se porque a proximidade feria, começou a odiar porque o seu amor foi traído.
Um gato sobe-lhe para o colo. Ela afasta a caixa e coloca-a em cima do parapeito da janela enquanto o animal se aninha. “Então, Agnes? Aqui está mais quente, não é.” sorri ela. Passa-lhe suavemente os dedos pelos pêlos da cabeça, ouve-se o ronronar do bicho. Ela desvia o seu olhar e pelo vidro partido vê o céu que já começa a clarear. Mais um dia que nasce.